RESENHA “ESCUTE AS FERAS” – NASTASSJA MARTIN
O texto da newsletter de hoje é uma contribuição do escritor e psicanalista Leonardo Araújo, convidado a escrever sobre o livro “Escute as feras”, de Nastassja Martin. O livro, indicado por Leonardo, foi lido pelo Clube de Leitura da EMCM em 2023.
O animal nos faz perceber que o saber nasce com a aparência do corpo, músculos, forma, gestos e movimento.
Michel Serres
No livro de ensaios Hominescências, o filósofo francês Michel Serres descreve o encontro com uma leoa-marinha no arquipélago de Galápagos. Dócil, ela nada executando movimentos sinuosos, que parecem feitos para seduzir aquele outro animal pequeno e desengonçado que a observa hipnotizado. O filósofo-mergulhador passa então a reproduzir os gestos dela, estabelecendo uma forma de comunicação cinética que aprofunda a zona de interação entre os dois. Nas águas verde-esmeralda, o jogo de imitação produz uma transferência de afetos interespécies, forma aproximada do que humanamente nomeamos de “amor”. A dança dura cerca de vinte minutos, interrompida pela chegada de outro leão-marinho reivindicando a presença da companheira desgarrada. Ao final, o encontro é descrito por Serres como uma forma de incorporação mútua, pela qual duas ontologias distintas puderam se experimentar.
Escute as feras (Croire aux fauves), de Nasstasja Martin, também narra o contato entre natureza e cultura, mas, aqui, o exercício de incorporação ultrapassa qualquer metáfora, pois é pela carne e pelo sangue da antropóloga e do animal que fragmentos de seus seres são compartilhados. Ao viajar para a Sibéria a fim de estudar a etnia even, habitante do extremo norte do mundo, Nasstasja é marcada pelo encontro com um urso cinza na Floresta de Tvaián, região montanhosa de Kamtchátka, ao pé do vulcão Kámien. Ignorando os sinais de aviso, ela se embrenha solitariamente por caminhos perigosos e é atacada pelo enorme animal, que crava os dentes em seu rosto, levando-lhe parte do maxilar. Da perna da mulher, um rasgo profundo mancha de vermelho a brancura da neve sob a qual está deitada, à espera de que alguém atenda a seus pedidos de socorro. Ela só consegue sobreviver por ter conseguido cravar uma picareta na pata do urso, derramando seu sangue quente e a ele se misturando. Um se torna a fera do outro.
Debruçando-se sobre esse acontecimento – momento de irrupção de uma singularidade, como diria Foucault – o relato de Martin passeia por diferentes gêneros literários (relato etnográfico, autobiografia, prosa literária) para falar de mundos que se encontram e das consequências que isso traz para ela. O ataque, que poderia facilmente lhe ter custado a vida, jamais é descrito como um trauma, no entanto. Na verdade, trata-se de outra coisa, de “um nascimento, pois claramente não é uma morte” (p. 07). Influenciada pela cultura animista dos even, o encontro com o animal é narrado em termos cósmicos. Se mulher e urso se encontraram é porque já se procuravam em sonho, e nada poderia ter sido feito para evitar isso, pois seus espíritos estavam de algum modo entrelaçados.
É isso que Andrei, um dos amigos even de Martin, tentar dizer à antropóloga quando afirma que ela deveria perdoar a fera, afinal de contas sua intenção não era matá-la, mas deixar nela uma marca. Nastassja renasce então como miêdka, termo nativo empregado para falar daqueles/as que sobrevivem ao ataque de um urso, passando a habitar, de agora em diante, a fronteira entre dois mundos. Metade humana, metade animal. Elo entre seres humanos e os “ursos lá em cima” (p. 24).
A longa, lenta e dolorosa recuperação física de Nastassja, as inúmeras cirurgias, a incerteza sobre a aparência após o ataque, as dúvidas sobre o retorno à Sibéria são acompanhadas de outro processo igualmente radical: a transformação de sua identidade, conceito moderno sobre o qual se estruturam uma série de clivagens ilusórias. Após anos reunindo narrativas sobre presenças múltiplas que habitam um mesmo corpo, agora é na própria carne que Martin experimenta o surgimento de uma nova identidade, feita também da alteridade que marcou seu rosto.
É com esse mundo de transações impróprias e de misturas perigosas que a antropóloga precisa se haver para seguir vivendo com o novo ser cuja gênese se afunda nas profundezas do tempo, “Um tempo em que eu e o urso, minhas mãos nos seus pelos e seus dentes na minha pele, passamos por uma iniciação mútua: uma negociação a respeito da qual vamos viver” (p. 51). É esse segredo colhido na Floresta de Tváian que ela tenta nos contar, intenção que o título em francês deixa ainda mais evidente, na medida que “croire” também poderia ser traduzido como “acredite”. Acreditar nas feras, portanto, significa, entre outras coisas, sermos tocados por uma verdade fulgurante: a de que o “eu” é uma virtualidade, casa de muitos habitantes, lugar que contém a “a possibilidade de uma outra vida, de um outro mundo” (p. 60). Devir, metamorfose, desejo e sonho.
Leonardo Araújo